quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Capitulo 6

Postado por Estante de Livros às quarta-feira, dezembro 04, 2013
(SEIS)
Era sempre assim: ele procurava a chave do Rabecão de Satã em todos os lugares e,
depois de um tempo, desistia, dizendo: “Tá. Vou pegar o fugging do ônibus”, e aí, quando já
ia em direção à porta, ela aparecia. A chave aparece quando você faz as pazes com o ônibus;
as Katherines aparecem quando você começa a acreditar que não há mais nenhuma
Katherine no mundo; e como não poderia deixar de ser, o momento eureca se deu
exatamente quando Colin começou a aceitar o fato de que jamais aconteceria.
Ele sentiu a empolgação do momento se propagar como uma onda por seu corpo, os
olhos piscavam rapidamente enquanto ele se esforçava para se lembrar da ideia em toda a
sua completude. Deitado ali, de costas, naquele ambiente quente e empoeirado, a sensação
provocada pelo momento eureca equivalia à de mil orgasmos ao mesmo tempo, só que sem
tanta lambança.
— Eureca? — perguntou Hassan, a empolgação evidente em sua voz.
Hassan também vinha esperando por aquilo.
— Preciso colocar isso no papel — Colin disse, se sentando.
A cabeça dele doía muito, mas ele colocou a mão no bolso e tirou o caderninho que
carregava para todo lado, além do lápis no 2, que estava quebrado ao meio por causa do
tombo, mas ainda dava para escrever. Ele rascunhou:
Onde x = tempo e y = felicidade, y = 0: o início e o término do relacionamento; y negativo: quando o h termina;
y positivo: quando a m termina — meu relacionamento com K-19.
• • •
Ele ainda estava rascunhando quando escutou Lindsey Lee Wells chegando. Arregalou os
olhos e a viu com outra camisa de malha (em que se lia GUTSHOT!), carregando uma caixa
de primeiros socorros com uma, juro por Deus, cruz vermelha pintada.
Lindsey ajoelhou-se ao lado de Colin, tirou a camisa da cabeça dele com cuidado e falou:
— Vai doer.
Ela encostou um cotonete comprido no corte, embebido no que parecia ser molho de
pimenta.
— FUG! — Colin gritou, se encolhendo, e olhou para cima, vendo os grandes olhos
castanhos dela piscarem por causa do suor que pingava enquanto a garota agia.
— Eu sei. Foi mal. Tá, acabou. Cê não precisa levar ponto, mas aposto que vai ficar com
uma cicatrizinha. Tudo bem?
— O que é mais uma cicatriz? — Colin disse, distraído, enquanto ela pressionava a testa
dele com uma atadura de gaze enorme. — Sinto como se alguém tivesse me dado um soco
no cérebro.
— Possível concussão cerebral — Lindsey observou. — Que dia é hoje? Onde cê tá?
— Hoje é terça-feira e eu estou no Tennessee.
— Quem era senador de New Hampshire em 1873? — Hassan perguntou.
— Bainbridge Wadleigh — respondeu Colin. — Não acho que eu tenha uma concussão
cerebral.
— Isso é sério? — perguntou Lindsey. — Quer dizer, cê sabe isso de verdade?
Colin fez que sim com a cabeça, devagar.
— É — respondeu. — Eu sei o nome de todos os senadores. Além do mais, esse é fácil de
lembrar, porque sempre penso em como seus pais devem fugging odiar você para colocar o
nome de Bainbridge Wadleigh.
— Sério — disse Hassan. — Tipo, a pessoa já nasceu com o sobrenome Wadleigh. Só o fato
de ser um Wadleigh já é ruim o suficiente. Mas aí você pega esse Wadleigh e o promove a
Bainbridge. Não é de admirar que o pobre coitado nunca tenha conseguido se eleger
presidente.
Lindsey acrescentou:
— Mas, por outro lado, um cara chamado Millard Fillmore foi presidente. Nenhuma mãe
que se preze botaria Millard num Fillmore também.
Ela entrou na conversa tão rapidamente e de um jeito tão natural que Colin já estava
revendo sua teoria sobre a Celebrity Living. Ele sempre achou que as pessoas de Lugar
Nenhum, Tennessee, seriam mais burras que Lindsey Lee Wells.
Hassan sentou-se ao lado de Colin e pegou o caderninho do amigo. Ele o segurou no alto,
contra o sol, que havia saído de trás de uma nuvem para continuar castigando o solo
rachado e alaranjado.
Deu uma olhada rápida no papel e disse:
— Você me fez ficar aqui todo empolgado e na expectativa e a grande descoberta é que
você gosta de levar o fora das suas namoradas? Merda, Colin. Eu mesmo poderia ter dito
isso. Para falar a verdade, eu disse.
— O amor pode ser representado graficamente! — Colin disse, na defensiva.
— Peraí. — Hassan deu mais uma olhada no papel e depois olhou para Colin. —
Universalmente? Você está querendo dizer que isso vai funcionar para qualquer um?
— Isso. Porque relacionamentos são muito previsíveis, não são? Bem, estou
desenvolvendo uma forma de fazer isso. Pegue quaisquer duas pessoas e, mesmo que elas
ainda não se conheçam, a fórmula vai mostrar quem vai terminar com quem se vierem a
namorar e aproximadamente quanto tempo o relacionamento vai durar.
— Impossível — disse Hassan.
— Não, não é, porque é possível supor um futuro quando se tem um entendimento básico
de como é provável que as pessoas ajam.
O suspiro longo e lento de Hassan terminou num sussurro.
— É. Tá. Isso é interessante.
Ele não poderia ter feito elogio maior a Colin.
Lindsey Lee Wells se abaixou e pegou o caderninho da mão de Hassan. Leu devagar. Por
fim, perguntou:
— O que diabos é K-19?
Colin apoiou a mão na terra seca e empurrou o corpo para cima, para se levantar.
— O “o que” é “quem” — ele respondeu. — Katherine XIX. Eu namorei dezenove garotas
chamadas Katherine.
Lindsey Lee Wells e Colin ficaram se encarando por um bom tempo até que, por fim, o
sorriso dela deu lugar a uma risadinha.
— O que foi? — Colin perguntou.
Ela balançou a cabeça, mas não conseguiu parar de rir.
— Nada. Vamos ver o arquiduque.
— Não, diga — ele insistiu.
Colin não gostava que guardassem segredos dele. Estar por fora de alguma coisa o irritava
mais do que deveria, na verdade.
— Não é nada. É só que… eu só namorei um garoto.
— E por que isso é engraçado? — perguntou Colin.
— É engraçado — ela explicou — porque o nome dele é Colin.
O Meio (do Começo)
Lá pelo terceiro ano a incapacidade de Colin de alcançar um bem-estar sociológico havia se
tornado tão óbvia para todos que ele só assistia às aulas da Kalman três horas por dia. O
restante, passava com seu tutor vitalício, Keith Carter, que tinha um Volvo cujas letras da
placa eram LOOOUCO. Keith era um daqueles caras que não passou da fase do rabo de
cavalo. Também tinha (ou, no caso, tentava ter) um bigode espesso e volumoso, que tocava
o lábio inferior quando a boca estava fechada — o que era muito raro. Keith adorava falar, e
sua plateia preferida era Colin Singleton.
O tutor era amigo do pai de Colin e professor de psicologia. Seu interesse no garoto não
era exatamente altruísta — no decorrer dos anos, Keith publicou vários artigos sobre a
prodigiosidade de Colin. E Colin gostava de ser assim, tão especial que até os estudiosos
ficavam interessados. Além disso, Keith Louco era o mais próximo que Colin tinha de um
melhor amigo. Todo dia Keith ia dirigindo até a cidade e encontrava Colin numa sala
pequena como um armário de vassouras, no terceiro andar da Escola Kalman. Colin
basicamente podia ler o que quisesse em silêncio durante quatro horas, e Keith o
interrompia de vez em quando para debater algum tema, e então, às sextas-feiras, eles
passavam o dia falando sobre o que Colin havia aprendido. Colin gostava mais disso que
das aulas normais. Principalmente porque Keith nunca aplicou nele um Abdominável
Homem das Neves.
Keith Louco tinha uma filha, Katherine, que estava no mesmo ano de Colin na escola mas
era oito meses mais velha. Ela frequentava um colégio na zona norte da cidade, mas, de vez
em quando, os pais de Colin convidavam Keith Louco, a mulher dele e Katherine para
jantar e falar sobre o “progresso” de Colin e coisas do gênero.
Depois do jantar, os pais se sentavam na sala de estar, rindo cada vez mais alto conforme
o tempo ia passando, e Keith falava alto que não tinha a menor condição de voltar dirigindo
até em casa, que precisaria de uma xícara de café depois de tanto vinho — “Sua casa é o
paraíso dos enófilos”, ele dizia.
• • •
Certa noite em novembro, quando Colin estava no terceiro ano e o tempo já havia esfriado
apesar de a mãe dele ainda não ter decorado a sala para o Natal, Katherine foi até sua casa.
Depois de um jantar de frango ao molho de limão e arroz integral, Colin e Katherine foram
para a sala de estar, onde Colin se deitou atravessado no sofá e ficou estudando latim. Ele
havia acabado de descobrir que o presidente Garfield, que não era particularmente
conhecido por sua inteligência, tinha a habilidade de escrever simultaneamente em latim e
em grego — latim com a mão esquerda e grego com a direita. Colin tinha a intenção de
igualar o feito.20 Katherine, uma loirinha pequenininha que compartilhava com o pai tanto
o rabo de cavalo quanto o fascínio por prodígios, ficou sentada observando Colin em
silêncio. Ele estava consciente da presença dela, mas aquilo não o distraiu, porque as
pessoas com frequência ficavam observando enquanto ele estudava, como se houvesse
algum segredo em seu modo de tratar a vida acadêmica. O segredo, na verdade, era apenas o
fato de ele passar mais tempo que todo mundo estudando e prestando atenção.
— Como é que você já sabe latim?
— Eu estudo muito — ele respondeu.
— Por quê? — ela perguntou, chegando perto e se sentando no sofá ao lado dos pés dele.
— Porque eu gosto.
— Por quê?
Ele fez uma pausa por um instante. Não familiarizado com o “jogo do por quê”, estava
levando a sério cada uma das perguntas.
— Eu gosto porque isso faz eu me sentir diferente e melhor. E porque sou muito bom
nisso.
— Por quê? — ela perguntou, a voz melodiosa, quase sorrindo.
— Seu pai diz que é porque sou melhor que os outros em me lembrar das coisas, isso
porque presto muita atenção e dou muita importância a tudo.
— Por quê?
— Porque é importante saber as coisas. Por exemplo, há pouco tempo eu aprendi que,
certa vez, o imperador romano Vitélio comeu mil ostras em um só dia, o que foi um ato
impressionante de abliguritio21 — ele disse, usando uma palavra que tinha certeza de que
Katherine não conhecia. — Saber também é importante porque faz você se sentir especial, e
você pode ler livros que as pessoas normais não conseguem, como a obra Metamorfoses, de
Ovídio, que foi escrita em latim.
— Por quê?
— Porque ele morava em Roma quando lá se falava e se escrevia em latim.
— Por quê?
E essa o pegou de jeito. Por que Ovídio viveu na Roma Antiga em 20 AEC,22 e não em
Chicago em 2006 EC? Será que Ovídio ainda teria sido Ovídio se vivesse nos Estados
Unidos da América? Não, claro que não, porque ele seria um nativo americano ou talvez
um ameríndio ou um dos primeiros habitantes ou um indígena, que não tinham o latim
nem qualquer outro tipo de linguagem escrita naquela época. Então, será que Ovídio se
tornou importante porque era Ovídio ou porque viveu na Roma Antiga?
— Essa é uma ótima pergunta e eu vou tentar descobrir a resposta para você — ele
concluiu, que era o que Keith Louco falava quando não tinha resposta.
— Quer ser meu namorado? — Katherine perguntou.
Colin se sentou rapidamente e a encarou, os olhos azuis da menina voltados para o colo.
Tempos depois, ele viria a chamá-la de Katherine, a Grande. Katherine I. Katherine, a
Magnífica. Ela era visivelmente mais baixa que ele, mesmo sentado, e parecia estar falando
sério, um pouco nervosa até, os lábios comprimidos enquanto olhava para baixo. Alguma
coisa foi se propagando pelo corpo de Colin. Suas terminações nervosas explodiram em
arrepios na pele. Seu diafragma vibrou. E, obviamente, não devia ser paixão, nem amor, e
não parecia ser amizade, então devia ser o que os garotos na escola chamavam de estar a fim.
E ele respondeu:
— Sim, sim, quero.
Ela virou-se para ele, o rosto arredondado, as bochechas fofas e sardentas, e se inclinou
para a frente, os lábios num biquinho, e beijou-o na bochecha. Esse foi o primeiro beijo de
Colin, e os lábios dela lembravam o inverno — frios, secos e rachados —, então ocorreu a
Colin que a sensação despertada pelo beijo não fora nem de perto tão boa quanto o som da
voz dela perguntando se ele queria ser seu namorado.
20 Mas nunca conseguiu, porque, por mais que tentasse, ele simplesmente não era ambidestro.
21 Termo em latim que significa “gastar uma enorme quantia em dinheiro com comida”.
22 Ninguém mais diz a.C. nem A.D. Isso saiu de moda. Agora ou se diz EC (Era Comum) ou AEC (Antes da Era Comum).

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