quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Capitulo 5

Postado por Estante de Livros às quarta-feira, dezembro 04, 2013
(CINCO)
Duas horas depois de terem desistido de ver o Maior Crucifixo de Madeira do Mundo,
Hassan tocou de novo no assunto.
— Você já sabia que o Maior Crucifixo de Madeira do Mundo ficava no Kentucky? —
gritou, a janela aberta, a mão esquerda balançando em ondas com a força do vento.
— Só descobri isso hoje — Colin respondeu. — Mas sei que a maior igreja de madeira do
mundo fica na Finlândia.
— Isso não é interessante — disse Hassan.
Cada “isso não é interessante” de Hassan havia ajudado Colin a perceber o que as outras
pessoas gostavam e o que não gostavam de ouvir. Colin nunca tivera essa percepção antes
de Hassan, porque todo mundo ou fingia que estava interessado ou o ignorava. Ou então,
no caso das Katherines, fingia e depois ignorava. Graças à lista compilada por Colin de
coisas que não eram interessantes,13 ele conseguia manter diálogos razoavelmente normais.
Depois de trezentos quilômetros e uma parada para abastecer, tendo saído a salvo do
Kentucky, eles estavam a meio caminho entre Nashville e Memphis. O vento que entrava
pelas janelas abertas havia secado o suor dos dois sem chegar exatamente a refrescá-los, e
Colin se perguntava como poderiam encontrar um lugar com ar-condicionado quando
reparou num letreiro pintado à mão acima de uma plantação de algodão, milho, soja ou
algo do gênero.14 SAÍDA 212 — VISITE O TÚMULO DO ARQUIDUQUE FRANCISCO
FERDINANDO — O CADÁVER QUE DEFLAGROU A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL.
— Isso simplesmente não parece plausível — Colin comentou, baixinho.
— Só estou dizendo que deveríamos ir a algum lugar — Hassan falou, sem dar ouvidos a
ele. — Quer dizer, eu gosto dessa interestadual tanto quanto qualquer outra pessoa, mas se
continuarmos seguindo para o sul, vai ficar cada vez mais quente, e eu já estou suando
como uma prostituta dentro de uma igreja.
Colin esfregou a mão no pescoço dolorido, pensando que de jeito nenhum passaria outra
noite no carro se tinha dinheiro suficiente para pagar um quarto de hotel.
— Você viu aquela placa? — ele perguntou.
— Que placa?
— Aquela falando do túmulo do arquiduque Francisco Ferdinando.
Desviando completamente os olhos da estrada, Hassan virou-se para Colin, abriu um
amplo sorriso e deu um soquinho no ombro do amigo.
— Excelente. Excelente. E, de qualquer forma, é hora do almoço.
• • •
Assim que Colin saltou do carro no estacionamento da lanchonete Hardee’s, na Saída 212,
no condado de Carver, Tennessee, ligou para a mãe.
— Oi, estamos no Tennessee.
— E como você está se sentindo agora, querido?
— Melhor, acho. Não sei. Está quente aqui. Alguém, humm, alguém ligou?
A mãe fez uma pausa, e Colin pôde sentir a desagradável piedade que havia nela.
— Sinto muito, meu amor. Vou dizer para, humm, alguém, ligar para o seu celular.
— Obrigado, mãe. Preciso ir agora. Vou almoçar no Hardee’s.
— Parece uma boa ideia. Não se esqueça do cinto de segurança! Amo você!
— Eu também.
• • •
Após um implacavelmente gorduroso Monster Thickburger na lanchonete vazia, Colin
perguntou para a mulher da caixa registradora, cujo corpo parecia ter sofrido os efeitos da
ingestão de uma quantidade talvez grande demais de refeições no local de trabalho, como
chegar ao túmulo do Francisco Ferdinando.
— Quem? — ela perguntou.
— O arquiduque Francisco Ferdinando.
A mulher ficou olhando para ele sem esboçar qualquer rea ção por um instante, mas então
seus olhos se arregalaram.
— Ah, cês tão procurando Gutshot. Garoto, cê tá indo pra roça, hem?
— Gutshot?
— É. Bem, o que cê precisa fazer agora é sair do estacionamento e virar à direita, quer
dizer, saindo da autoestrada. E aí, uns três quilômetros daqui, a rua vai fazer um T. Tem um
posto de gasolina Citgo abandonado por lá. Cê pega a direita naquela rua e aí cê vai dirigir
um tempão sem ver nada de um lado nem de outro por uns quinze ou vinte quilômetros.
Cê vai subir um pedacinho de uma colina e aí cê chega em Gutshot.
— Gutshot?
— Gutshot, Tennessee. Foi pra lá que levaram o arquiduque.
— Então eu pego a direita e depois viro à direita de novo.
— Isso aí. Espero que cês se divirtam por lá, viu?
— Gutshot — Colin repetiu baixinho. — Tá, obrigado.
• • •
Parecia que a tal estrada de quinze a vinte quilômetros tinha ficado bem no epicentro de
um terremoto, e depois nunca mais foi asfaltada. Colin dirigia com cuidado, mas, ainda
assim, os amortecedores gastos do Rabecão rangiam e gemiam nos intermináveis buracos e
ondulações do asfalto.
— Talvez a gente não precise ver o arquiduque — disse Hassan.
— Essa é uma viagem de carro. É uma aventura — Colin respondeu, imitando-o.
— Você acha que os moradores de Gutshot, Tennessee, já viram um árabe de carne e osso
na frente deles?
— Ah, não seja tão paranoico.
— Ou então, por falar nisso, acha que já viram alguém assim como você, com esse cabelo
cacheado tipo judeu-afro?
Colin ponderou sobre aquilo por um momento e então disse:
— Bem, a mulher do Hardee’s foi legal com a gente.
— Tá, mas a moça no Hardee’s chamou Gutshot de “roça” — Hassan argumentou,
imitando o sotaque da mulher. — Quer dizer, se o Hardee’s é urbano, não sei se quero ver o
que é rural.
Hassan continuou com sua diatribe e Colin sorriu e deu risadinhas nas horas certas, mas
simplesmente continuou dirigindo, calculando a probabilidade de o arquiduque, que havia
morrido em Sarajevo mais de noventa anos antes, e que havia surgido do nada na cabeça de
Colin na noite anterior, acabar entre ele e qualquer que fosse o lugar para onde estava indo.
Aquilo era irracional, e Colin odiava pensar irracionalmente, mas não pôde evitar cogitar se
o fato de estar na presença do arquiduque talvez pudesse lhe revelar algo a respeito de seu
pedaço perdido. Mas Colin sabia que o universo não conspirava para colocar uma pessoa
em um local em vez de em outro. E pensou em Demócrito: “Em todo lugar o homem culpa
a natureza e o destino, embora seu destino seja nada mais que o eco de seu caráter e suas
paixões, seus erros e suas fraquezas.”15
Então não foi uma obra do destino, mas sim o caráter e as paixões de Colin Singleton,
seus erros e suas fraquezas que o levaram a Gutshot, Tennessee — POPULAÇÃO 864, como
se podia ler na placa à beira da estrada. Num primeiro momento, Gutshot se pareceu com
tudo o que veio antes dela, a única diferença era a estrada, mais bem-asfaltada. Dos dois
lados do Rabecão, campos de abóbora, plantas luminosamente verdes que se estendiam
num cinza infinito, interrompidas apenas por um eventual pasto de cavalos, um celeiro ou
grupos isolados de árvores. Depois de algum tempo, Colin viu à sua frente, na beira da
estrada, uma construção de dois andares feita de tijolos de cimento pintados de um cor-derosa
pavoroso.
— Acho que Gutshot é aqui — ele disse, balançando a cabeça na direção do prédio.
Ao lado, uma placa pintada a mão dizia:
REINO DE GUTSHOT — LOCAL DO DESCANSO ETERNO DO ARQUIDUQUE
FRANCISCO FERDINANDO / CERVEJA GELADA / REFRIGERANTES / ISCAS.
Colin manobrou o carro para entrar no estacionamento de cascalho da loja. Enquanto
soltava o cinto de segurança, falou para Hassan:
— Só queria saber se eles guardam o arquiduque com o refrigerante ou com a isca.
A gargalhada sonora de Hassan ecoou pelo carro.
— Merda, Colin fez uma piadinha. Esse lugar é mágico para você. Só é uma pena o jeito
como vamos morrer aqui. Tipo, falando sério. Um árabe e um meio-judeu entram numa
loja no Tennessee. É o começo de uma piada, e no final vai ter a palavra “sodomia”.
Mesmo assim, Colin ouvira Hassan atrás dele, arrastando os pés pelo cascalho do
estacionamento.
Os dois passaram por uma porta de tela e entraram na Mercearia Gutshot. De trás do
balcão, uma garota de nariz longilíneo e empinado e olhos castanhos que deviam ser do
tamanho de alguns planetas menores levantou o olhar de um exemplar da revista Celebrity
Living e disse:
— Como cês tão?
— Bem. E você? — Hassan perguntou enquanto Colin ponderava se em toda a história da
humanidade alguma alma que valesse a pena teria lido um exemplar sequer da Celebrity
Living.16
— Tô bem — disse a garota.
Eles ficaram explorando a loja por um tempo, andando pelo piso empoeirado de madeira
envernizada, fingindo estar escolhendo entre os vários pacotes de biscoitos salgados, as
bebidas e os peixinhos nadando em tanques de iscas. Meio agachado atrás de uma
prateleira de sacos de batatas fritas que ia até a altura do peito, Colin puxou a camisa de
malha de Hassan, colocou a mão em forma de concha no ouvido do amigo e sussurrou:
— Fale com ela.
Só que, na verdade, Colin não sussurrou, porque nunca dominara a arte de sussurrar — ele
meio que falou com um tom de voz ligeiramente mais baixo bem no tímpano de Hassan.
Hassan se encolheu e balançou a cabeça negativamente.
— Qual é a superfície total, em quilômetros quadrados, do estado do Kansas? — ele
sussurrou.
— Humm, uns 211.800. Por quê?
— Nada. É que eu acho interessante o fato de você saber isso mas não conseguir encontrar
um jeito de falar sem usar as cordas vocais.
Colin começou a explicar que até mesmo um sussurro envolve a utilização das cordas
vocais, mas Hassan só revirou os olhos. Então levou a mão até o rosto e mordiscou a
almofada do polegar enquanto olhava para Hassan, esperançoso, mas o amigo já havia
desviado sua atenção para os sacos de batata frita e, por isso, acabou sobrando para Colin.
Ele andou até o balcão e disse:
— Oi, nós estamos querendo saber a respeito do arquiduque.
A leitora da Celebrity Living abriu um sorriso. As bochechas salientes e o nariz longilíneo
desapareceram. Ela possuía o tipo de sorriso largo e matreiro que não lhe deixa opção
senão acreditar — só dava vontade de fazê-la feliz para poder continuar vendo aquele
sorriso. Mas ele sumiu de repente.
— As visitas começam de hora em hora, custam 11 dólares e, pra ser sincera, não valem o
ingresso — ela respondeu num tom de voz monótono.
— Vamos pagar — Hassan disse, aparecendo atrás de Colin de repente. — O garoto precisa
ver o arquiduque. — E então Hassan inclinou o corpo para a frente e fingiu sussurrar: — Ele
está à beira de um ataque de nervos. — Hassan colocou 22 dólares no balcão, os quais a
garota prontamente deslizou para dentro do bolso do short, ignorando solenemente a caixa
registradora à sua frente.
A menina soprou um cacho do cabelo castanho-avermelhado da frente do rosto e
suspirou.
— Tá quente lá fora — ela comentou.
— Vai ser, tipo, uma visita guiada? — Colin perguntou.
— É. E pra minha infelicidade eterna sou eu a guia turística.
Ela saiu de trás do balcão. Baixa. Magra. O rosto mais interessante que bonito.
— Meu nome é Colin Singleton — ele disse para a guia turística/caixa de mercearia.
— Lindsey Lee Wells — ela falou, estendendo a mão pequena, as unhas com um esmalte
cor-de-rosa cintilante descascado.
Ele apertou a mão dela, que então se virou para Hassan.
— Hassan Harbish. Muçulmano sunita. Não terrorista.
— Lindsey Lee Wells. Metodista. Também não.
A garota sorriu de novo. Colin não estava pensando em nada além dele mesmo, da K-19 e
do pedaço de sua barriga que fora tirado do lugar, mas não havia como negar o sorriso dela.
Aquele sorriso seria capaz de pôr fim a guerras e curar o câncer.
• • •
Por um bom tempo eles seguiram atravessando o terreno atrás da loja, com o mato na
altura dos joelhos — o que causou irritação na pele sensível das panturrilhas expostas de
Colin. Ele pensou em mencionar isso e perguntar se, quem sabe, não haveria algum trecho
recém-aparado pelo qual pudessem andar, mas sabia que Hassan acharia que aquilo era
sitzpinklerice, então permaneceu calado enquanto o capim lhe dava comichões. Ele pensou
em Chicago, onde uma pessoa pode passar dias sem pisar uma vez sequer num trecho de
terra de verdade. Aquele mundo perfeitamente asfaltado o atraía, e Colin sentia falta dele
quando seus pés pousavam nos desníveis da terra batida, que podiam fazê-lo torcer o
tornozelo.
Enquanto Lindsey Lee Wells andava à frente dos dois (numa atitude típica de uma leitora
da Celebrity Living; evitando falar com eles), Hassan simplesmente seguiu ao lado de Colin. E
ainda que Hassan, tecnicamente falando, não o tenha chamado de sitzpinkler por ser
alérgico ao mato, Colin sabia que o amigo teria feito isso, o que o incomodou. E então
Colin, mais uma vez, puxou o assunto que menos agradava a Hassan:
— Eu já falei hoje que você deveria ir para a faculdade?
Hassan revirou os olhos.
— Tá, eu sei. Quer dizer, veja só aonde a excelência acadêmica levou você.
Colin não conseguiu pensar numa resposta à altura.
— Bem, mas você deveria ir esse ano. Não dá para você não ir para sempre. Você só precisa
se inscrever nas matérias a partir de 15 de julho.
(Colin checara isso.)
— Na verdade eu posso não ir para sempre, sim. Já disse antes e vou dizer de novo: gosto de
ficar coçando o saco, vendo TV e engordando. Esse é o grande trabalho da minha vida,
Singleton. E é por isso que adoro viagens de carro, cara. É como estar fazendo alguma coisa
sem, na verdade, fazer nada. De qualquer forma, meu pai não fez faculdade e é rico que nem
um porco.
Colin ficou se perguntando como porcos podem ser ricos, mas apenas disse:
— Tá, mas também seu pai não fica coçando o saco. Ele trabalha, tipo, umas cem horas
por semana.
— Verdade. Verdade. E é graças a ele que eu não tenho que trabalhar nem fazer faculdade.
Colin não tinha reposta para aquilo. Mas simplesmente não conseguia entender a apatia
de Hassan. Qual o sentido de estar vivo se você nem ao menos tenta fazer algo
extraordinário? Que estranho acreditar que um Deus lhe deu a vida e, ao mesmo tempo,
achar que a vida não espera de você nada mais que ficar vendo TV.
Mas, pensando bem, alguém que acabou de cair na estrada para fugir das lembranças de
sua décima nona Katherine, e que está se arrastando pelo centro-sul do Tennessee a
caminho do túmulo de um falecido arquiduque austro-húngaro, talvez não tenha o direito
de sair por aí achando nada estranho.
E Colin estava ocupado criando anagramas para nada estranho — santa ordenha, tá nada
senhor, DNA nesta hora — quando deixou o próprio DNA orgulhoso: tropeçou num
montículo de terra e caiu. Ele ficou tão desorientado com a visão do solo se aproximando
depressa que nem chegou a esticar os braços para a frente e tentar aparar a queda com as
mãos. Apenas caiu para a frente como se tivesse levado um tiro nas costas. A primeira coisa
que tocou o chão foram seus óculos, seguidos imediatamente pela testa, que bateu em uma
pequena pedra pontuda.
Colin rolou para o lado e parou de barriga para cima.
— Eu caí — anunciou em alto e bom som.
— Merda! — Hassan gritou, e quando Colin abriu os olhos, viu a imagem embaçada do
amigo e de Lindsey Lee Wells se ajoelhando e olhando para ele.
O perfume dela era forte e frutado, e Colin presumiu que se chamava Curve. Ele havia
comprado um vidro desse para a Katherine XVII, mas ela não gostou da fragrância.17
— Estou sangrando, não estou? — Colin perguntou.
— Como um porco no abate — Lindsey disse. — Fica quieto. — Ela virou-se para Hassan e
disse: — Dá aqui sua camisa. — Ao que o garoto imediatamente respondeu “não”, o que
Colin deduziu ter algo a ver com os peitinhos protuberantes de Hassan. — A gente precisa
fazer pressão no machucado — Lindsey explicou para Hassan, que calmamente negou-se, de
novo, e ela retrucou: — Jesus Cristo… tá bem. — Ela tirou a própria camisa.
Colin apertou os olhos, forçando a vista na embaçada ausência dos óculos, mas não
conseguiu ver muito.
— Acho que deveríamos deixar isso para o segundo encontro — Colin disse.
— Tá, seu tarado — ela retrucou, mas ele pôde ouvi-la sorrindo.
Enquanto Lindsey passava a camisa devagar pela testa e pela bochecha de Colin e depois
pressionava com bastante força uma região macia acima da sobrancelha direita dele,
continuou falando.
— Que grande amigo esse que cê tem, hein? Para de mexer o pescoço. Nossas duas
preocupações aqui são algum tipo de lesão vertebral ou um hematoma subdural. Quer
dizer, as chances são bem pequenas, mas é preciso tomar todas as precauções, porque o
hospital mais próximo fica a uma hora daqui.
Ele fechou os olhos e tentou não se encolher enquanto ela fazia uma pressão enorme no
corte. Lindsey falou para Hassan:
— Faz pressão aqui com a camisa. Volto em oito minutos.
— Deveríamos ligar para um médico ou coisa assim — Hassan disse.
— Sou paramédica — Lindsey respondeu ao se virar.
— Que diabo de idade você tem? — ele perguntou.
— Dezessete. Tá. Tudo bem. Paramédica em fase de treinamento. Oito minutos. Juro.
Ela saiu correndo. O que Colin mais gostou não foi do cheiro do Curve — não
exatamente. Foi do cheiro do ar logo que Lindsey começou a se afastar correndo. O aroma
do perfume que ficou para trás. Não há palavra em inglês que descreva isso, mas Colin
conhecia o termo em francês: sillage. O que lhe agradava no Curve não era o aroma que
ficava na pele, mas o sillage, o cheiro doce e frutado que ele deixava ao se afastar.
• • •
Hassan sentou-se no mato alto, ao lado de Colin, pressionando bastante o corte.
— Foi mal não ter tirado a camisa.
— Os peitinhos? — perguntou Colin.
— É, pois é. Só acho que é preciso conhecer melhor a garota antes de mostrar meus
peitinhos. Cadê seus óculos?
— Foi isso que fiquei me perguntando quando ela tirou a camisa — Colin disse.
— Então você não conseguiu enxergar direito?
— Não consegui. Só vi que o sutiã era roxo.
— Era mesmo? — Hassan retrucou, com ironia.
E Colin se lembrou da K-19 sentada em cima dele na cama, o sutiã roxo, enquanto
terminava o namoro. E se lembrou da Katherine XIV, o sutiã preto e todo o resto preto
também. E se lembrou da Katherine XII, a primeira que usou sutiã, e de todas as Katherines
cujos sutiãs ele vira (quatro, a menos que se contem as alças, o que, no caso, elevaria o total
para sete). As pessoas achavam que ele gostava de sofrer, que gostava de levar o fora das
namoradas. Mas não era bem assim. Ele só não conseguia antever que isso estava por vir, e
ali, deitado no chão duro e irregular, com Hassan pressionando demais sua testa, a
distância que separava Colin e seus óculos permitiu que ele percebesse qual era o
problema: miopia. Ele tinha a vista curta. O futuro jazia à sua frente, inevitável mas
invisível.
— Achei — Hassan disse, e tentou colocar os óculos no rosto do amigo, meio
desajeitadamente.
Mas é difícil encaixar os óculos em outra pessoa e, por fim, Colin levantou a mão e
ajeitou a armação no nariz, conseguindo enxergar.
— Eureca — falou, baixinho.
Katherine XIX: O Fim (do Fim)
Ela terminou com ele no oitavo dia do décimo segundo mês, vinte e dois dias antes de
completarem um ano de namoro. Ambos tinham se formado naquela manhã, mas em
escolas diferentes, então os pais de Colin e os de Katherine, que eram velhos amigos,
marcaram um almoço de comemoração. E a noite ficou reservada só para os dois. Colin se
preparou fazendo a barba e colocando o desodorante Wild Rain, do qual ela gostava tanto
que chegava a se aninhar em seu peito para sentir o aroma.
Ele a buscara no Rabecão de Satã e os dois seguiram na direção sul pela avenida
Lakeshore, as janelas abertas, por onde podiam ouvir, mais alto que o ronco do motor, o
barulho das ondas do lago Michigan açoitando o litoral rochoso. À frente, uma visão aérea
da cidade. Colin sempre amara aquela vista panorâmica de Chicago. Embora não fosse
religioso, a visão do panorama urbano provocava nele o que em latim se chama de
mysterium tremendum et fascinans — uma mistura de medo aterrorizante com fascínio
arrebatador, do tipo que dá frio na barriga.
Eles continuaram até o centro da cidade, um trajeto cheio de curvas à direita e à esquerda,
passando em frente aos arranha-céus do centro comercial de Chicago, e já estavam
atrasados, porque Katherine sempre se atrasava para tudo. Então, depois de dez minutos
procurando uma vaga com parquímetro, Colin pagou dezoito dólares para parar num
estacionamento rotativo, o que deixou Katherine irritada.
— Só estou dizendo que poderíamos ter achado uma vaga na rua — ela disse ao apertar o
botão para chamar o elevador na garagem do estacionamento.
— Mas eu tenho dinheiro para isso. E nós estamos atrasados.
— Você não deveria gastar sem necessidade.
— Estou prestes a gastar cinquenta pratas em sushi — ele respondeu. — Por você.
A porta se abriu. Exasperado, ele encostou no revestimento de madeira do elevador e
suspirou. Eles mal se falaram até estarem dentro do restaurante, sentados a uma mesa
minúscula perto do banheiro.
— À formatura e a um jantar maravilhoso — ela disse, levantando o copo de Coca.
— Ao fim da vida como a conhecemos — Colin completou, e os dois brindaram
encostando os copos.
— Jesus, Colin, não é o fim do mundo.
— É o fim de um mundo — ele argumentou.
— Está preocupado com a possibilidade de não ser o cara mais inteligente da
Northwestern? — Ela sorriu e então suspirou.
Colin sentiu uma pontada repentina na barriga. Pensando em retrospecto, essa foi a
primeira dica de que alguma parte dele logo estaria faltando.
— Por que você suspirou? — ele perguntou.
A garçonete chegou nessa hora, interrompendo a conversa com um prato retangular de
sushis Califórnia e de salmão. Katherine separou os pauzinhos e Colin pegou o garfo. Ele
sabia falar um pouco de japonês, para um diálogo simples, mas os pauzinhos eram motivo
de frustração para ele.
— Por que você suspirou? — perguntou de novo.
— Jesus, por nada.
— Não, diga por quê — ele insistiu.
— É que você… você fica o tempo todo se preocupando com o fato de deixar de ser
prodígio ou de levar o fora de alguma namorada ou com sei lá mais o quê, e nunca, nem
por um segundo, fica agradecido. Você foi o orador da turma. Você vai para uma faculdade
excelente ano que vem, de graça. E daí que talvez você não seja uma criança prodígio? Isso é
bom. Pelo menos não é mais criança. Ou pelo menos não era mais para ser.
Colin mastigava. Ele gostava da alga que se usa para enrolar o sushi: de como era difícil
mastigá-la, da sutileza da água do mar.
— Você não entende — ele disse.
Katherine apoiou os pauzinhos na pequena vasilha com molho de soja e encarou-o de um
jeito que ia além da frustração.
— Por que você sempre tem que dizer isso?
— É verdade — ele falou simplesmente, e Katherine não entendia.
Ela continuava linda, engraçada, sabendo comer com os pauzinhos. Ser prodígio era tudo
o que Colin tinha, da mesma forma que um idioma tem suas palavras.
No meio de todo esse vaivém de perguntas e respostas, Colin tentava controlar o ímpeto
de perguntar se ela ainda o amava, porque a única coisa que Katherine odiava mais do que
Colin dizendo que ela não entendia era Colin perguntando se ela ainda o amava. Ele tentou
e tentou se controlar. Por sete segundos.
— Você ainda me ama?
— Ai, meu Deus, Colin! Por favor. Nós nos formamos. Estamos felizes. Comemore!
— Por quê? Está com medo de dizer?
— Eu te amo.
Ela nunca mais — nem uma vez sequer — diria essas palavras nessa ordem novamente.
— Dá para criar um anagrama para sushi? — perguntou.
— Ih, sus — ele respondeu imediatamente.
— Sus tem três letras; sushi tem cinco — ela disse.
— Não. “Ih, Sus.” O Ih e o Sus. Dá para fazer outros, mas eles não fazem sentido,
gramaticalmente falando.
Ela sorriu.
— Às vezes você se cansa de tanto eu perguntar se dá para criar anagramas?
— Não. Não. Eu nunca me canso de nada que você faz — disse, e aí ficou com vontade de
pedir desculpas, e de explicar que às vezes se sentia incompreendido, às vezes ficava
preocupado quando os dois discutiam e ela ficava um tempo sem dizer que o amava, mas
se conteve. — Além do mais, eu gosto que sushi vire “Ih, Sus”. Crie uma história.
“Crie uma história” era um jogo que ela inventara no qual Colin formava os anagramas e
Katherine inventava uma cena anagramática.
— Tá — ela disse. — Tá. Aí um cara vai pescar no píer e pega uma carpa. E é claro que ela
está toda cheia de pesticidas, esgoto e todas as porcarias nojentas do lago Michigan, mas
ele leva a carpa para casa mesmo assim porque imagina que se fritá-la por tempo suficiente
não vai ter problema. Ele limpa o peixe, corta em filés e aí o telefone toca, então tudo fica
na bancada da cozinha. Ele fala ao telefone por um tempo e, quando volta, vê que a irmã
menor, Susana, está segurando um grande pedaço cru da carpa do lago Michigan. E está
mastigando. Ela levanta os olhos para o irmão, e diz: “Sushi!” E ele exclama: “Ih, Sus…”
Eles riram. Ele nunca a amou tanto quanto naquele momento.
• • •
Mais tarde, depois que os dois entraram no apartamento na ponta dos pés e Colin subiu a
escada para dizer à mãe que chegara em casa — deixando de fora a informação,
provavelmente relevante, de que não estava sozinho —, e depois que haviam pulado na
cama, no andar de baixo, e depois que ela tirara a camisa dele, e ele, a dela, e depois que se
beijaram até os lábios dele ficarem dormentes e formigando, ela perguntou:
— Você está mesmo triste por se formar?
— Não sei. Se eu tivesse feito diferente… Se tivesse entrado na faculdade com 10 anos, ou
coisa assim… Não dá para saber se minha vida seria melhor. Nós provavelmente não
estaríamos juntos. Eu não teria conhecido Hassan. E muitos prodígios que se esforçam, se
esforçam e se esforçam acabam ainda mais fugged up que eu. Mas outros acabam sendo um
John Locke18 ou um Mozart ou sei lá quem mais. E as minhas chances de “Mozartidade”
acabaram.
— Col, você tem 17 anos. — Ela suspirou de novo.
Ela suspirava muito, mas não devia haver nada de errado, porque a sensação de tê-la
aninhada ao corpo dele era tão boa, a cabeça dela em seu ombro, sua mão afastando os
cabelos loiros e macios da frente do rosto dela. Ele olhou para baixo e pôde ver a alça do
sutiã roxo.
— Mas é como a tartaruga e a lebre, K.19 Eu aprendo mais rápido que as outras pessoas,
mas elas continuam aprendendo. Meu ritmo diminuiu e agora elas estão me alcançando.
Sei que tenho 17 anos. Mas já passei do meu ápice.
Ela riu.
— Sério. Existem estudos sobre essa merda. Os prodígios tendem a atingir seu ápice aos,
tipo, 12 ou 13 anos. E o que foi que eu fiz? Eu venci um fugging de um programa de
televisão um ano atrás? É essa a minha marca indelével na história da humanidade?
Katherine se sentou olhando para ele. Colin pensou nos outros suspiros dela, melhores e
diferentes, pensou no corpo dele roçando no dela. Ela o encarou por um bom tempo, aí
mordeu o lábio inferior e disse:
— Colin, talvez o problema seja nós dois.
— Ai. Merda — ele disse.
E foi aí que tudo começou.
O fim consistiu basicamente em sussurros dela e silêncio dele — porque Colin não sabia
sussurrar e os dois não queriam acordar os pais dele. Conseguiram não fazer barulho, em
parte porque parecia que todo o ar havia sido tirado dele. Paradoxalmente, Colin sentia
como se o término do namoro fosse a única coisa acontecendo em todo o planeta escuro e
silencioso, e, ao mesmo tempo, parecia que aquilo não estava acontecendo de fato. Ele
sentiu sua atenção se desviar da conversa unilateral e sussurrada e começou a se perguntar
se talvez todas as coisas grandes, dolorosas e incompreensíveis seriam paradoxais.
Ele era um homem à beira da morte olhando para os cirurgiões que tentavam salvá-lo. A
uma distância quase confortável da coisa em si, do que estava realmente acontecendo,
Colin pensou no mantra dos fracotes apatetados: paus e pedras podem quebrar meus ossos,
mas palavras nunca vão me machucar. Que mentira deslavada! Aquilo, ali e naquele
instante, era o verdadeiro Abdominável Homem das Neves: parecia que havia algo
congelando em seu estômago.
— Eu te amo tanto… e só quero que você me ame do mesmo jeito que eu te amo — ele
disse, o mais baixo que conseguiu.
— Você não precisa de uma namorada, Colin. Você precisa de um robô que não diga nada
além de “eu te amo”.
E parecia que pedras e paus o estavam atingindo de dentro para fora, era uma dor
palpitante e depois aguda logo abaixo da caixa torácica, e foi aí que ele sentiu, pela
primeira vez, que parte de suas vísceras lhe havia sido arrancada.
Katherine tentou ir embora da forma mais rápida e indolor possível, mas assim que
declarou que precisava sair de qualquer jeito, pois tinha hora para chegar em casa, Colin
começou a chorar. Ela segurou a cabeça dele encostada em sua clavícula. E mesmo se
sentindo patético e ridículo, Colin não queria que aquilo acabasse, porque sabia que a
ausência dela doeria mais que qualquer fim de namoro.
Mas Katherine foi embora mesmo assim e ele ficou sozinho no quarto, tentando
encontrar anagramas para meupedaçoperdido na vã tentativa de pegar no sono.

13 Entre muitos e muitos outros, os itens a seguir, definitivamente, não são interessantes: o esfíncter da pupila, a mitose, a
arquitetura barroca, piadas que terminavam com equações físicas, a monarquia britânica, a gramática russa e o papel
significativo que o sal desempenhou na história da humanidade.
14 Identificar plantações não está entre os talentos de Colin.
15 Em grego, para os curiosos: Οπου το άτομο κατηγορεί τη φύση και τη μοίρα, όμως η μοίρα του είναι συνήθως αλλά η ηχώ
του χαρακτήρα και των παθών του, των λαθών και των αδυναμιών του.
16 Traduzindo isso Venn-diagramaticamente, Colin teria argumentado que o mundo é dividido assim:
17 “Parece que eu esfreguei no pescoço chiclete de framboesa mastigado”, ela disse, mas não era isso — não exatamente. O
cheiro era de perfume de chiclete sabor framboesa, que, na verdade, era um aroma muito gostoso.
18 Filósofo e cientista político britânico que já sabia ler e escrever em latim e em grego numa idade em que o resto de nós não
consegue nem amarrar os sapatos sozinho.
19 Embora você vá perceber que Colin ainda não entendeu direito do que exatamente se trata a história da tartaruga e da
lebre, ele já havia deduzido que não era apenas sobre uma tartaruga e um coelho correndo. Com certeza.

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