quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Capitulo 4

Postado por Estante de Livros às quarta-feira, dezembro 04, 2013
(QUATRO)
Colin estacionou numa parada de beira de estrada perto de Paducah, no Kentucky, por
volta das três da madrugada, baixou o encosto do banco até espremer as pernas de Hassan
contra o assento traseiro e dormiu. Acordou umas quatro horas depois — Hassan o chutava
pelo encosto.
— Kafir, estou paralisado aqui atrás. Levante essa merda desse encosto. Eu preciso rezar.
Colin estivera sonhando com seus melhores momentos junto de Katherine. Estendeu o
braço para baixo e puxou a alavanca, o encosto pulando para a frente num tranco.
— Fug — disse Hassan. — Será que alguma coisa morreu na minha garganta ontem à noite?
— Humm, eu estou dormindo.
— Porque minha boca está com gosto de caixão destampado. Você trouxe pasta de dente?
— Existe uma palavra para isso, na verdade. Fetor hepaticus. Acontece nos estágios
avançados de…
— Isso não é interessante — falou Hassan, que era o que ele dizia sempre que Colin saía
por uma tangente aleatória. — Pasta de dente?
— Na nécessaire dentro da bolsa de viagem na mala do carro — respondeu Colin.11
Hassan saiu e bateu a porta, e alguns minutos depois fechou a mala do carro com um
estrondo. Colin esfregou os olhos e achou que era melhor acordar de uma vez. Enquanto
Hassan ajoelhava no chão de cimento do lado de fora, virado para Meca, Colin foi ao
banheiro. (Alguém tinha pichado na porta do reservado: LIGUE-ME PARA CHUPETA.
Colin ficou se perguntando se a pessoa estava oferecendo um boquete ou uma carga
elétrica na bateria e, pela primeira vez desde que ficara deitado e imóvel no carpete do
quarto, entregou-se a sua maior paixão: Ligue-me para chupeta; Um tal pica-pau herege.)
Ele saiu andando no calor do Kentucky e se sentou a uma mesa de piquenique de frente
para Hassan, que parecia estar agredindo a mesa com o canivete preso no chaveiro.
— O que você está fazendo? — Colin dobrou os braços em cima da mesa e baixou a
cabeça.
— Bom, enquanto você estava no banheiro, eu me sentei nesta mesa de piquenique aqui
no Cu do Mundo, Kentucky, e reparei que alguém tinha entalhado DEUS ODEIA GUEI, o
que, além de ser um pesadelo ortográfico, é absolutamente ridículo. Então estou mudando
isso para “Deus odeia baguetes”. É muito difícil discordar disso. Todo mundo odeia
baguetes.
— J’aime les baguettes — murmurou Colin.
— Você aime muitas porcarias.
Enquanto Hassan se esforçava para escrever Deus odeia baguetes, a cabeça de Colin
viajou dessa forma: (1) baguetes, (2) Katherine XIX, (3) o colar de rubis que comprara para
ela cinco meses e dezessete dias antes, (4) a maioria dos rubis vem da Índia, que (5) era
colônia do Reino Unido, da qual (6) Winston Churchill foi primeiro-ministro, e (7) não é
interessante o fato de que vários políticos do bem, como Churchill e Gandhi, eram carecas
enquanto (8) vários ditadores do mal, como Hitler, Stalin e Saddam Hussein, usavam
bigode? Mas (9) Mussolini só usava bigode de vez em quando, e (10) vários cientistas de
renome tinham bigode, como o italiano Ruggero Oddi, que (11) descobriu (e batizou em
própria homenagem) o esfíncter de Oddi no trato gastrintestinal, que é apenas um entre
vários esfíncteres menos conhecidos, como (12) o esfíncter da pupila.
E por falar nisso: quando Hassan Harbish apareceu na Escola Kalman no primeiro ano do
ensino médio, depois de uma década de ensino domiciliar, ele era bastante inteligente,
embora não tão prodigioso. Naquele outono, ele cursou Matemática 1 na turma de Colin,
que era do nono ano. Mas os dois nunca se falavam, porque Colin havia desistido de fazer
amizade com pessoas que não se chamassem Katherine. Ele odiava quase todos os alunos
da Kalman, o que não chegava a ser um problema, já que a maioria também o odiava.
Depois de umas duas semanas de aula, Colin levantou a mão e a Srta. Sorenstein falou:
— Pois não, Colin?
Ele estava com a mão no olho esquerdo, por baixo da lente dos óculos, visivelmente
sentindo algum tipo de desconforto.
— Posso sair da sala um instantinho? — perguntou.
— É muito importante?
— Acho que tem um cílio no esfíncter da minha pupila — respondeu Colin, e a turma
inteira caiu na gargalhada.
A Srta. Sorenstein o deixou sair e ele foi ao banheiro, onde, com ajuda do espelho, tirou o
cílio do olho, local onde se situa o esfíncter da pupila.
Depois da aula, Hassan achou Colin comendo um sanduíche de manteiga de amendoim
sem geleia na grande escadaria de pedra da entrada dos fundos da escola.
— Olhe só… — disse Hassan. — Hoje é meu nono dia numa escola, em toda a minha vida, e
mesmo assim já consegui, de alguma forma, perceber o que você pode e o que não pode
falar. E você não pode falar nada a respeito de seu esfíncter.
— É uma parte do olho — Colin disse, na defensiva. — Eu estava sendo inteligente.
— Aqui, cara. Você precisa levar em conta sua plateia. Isso teria feito o maior sucesso num
congresso de oftalmologia, mas, na aula de Matemática, todo mundo só ficou tentando
imaginar como diabos você conseguiu enfiar um cílio lá.
E foi aí que os dois ficaram amigos.
• • •
— Preciso confessar, não sou muito fã do Kentucky — Hassan disse.
Colin levantou a cabeça, apoiando o queixo nos braços. Ele percorreu com os olhos a
parada de beira de estrada por um instante. Seu pedaço perdido não estava ali.
— Tudo aqui também me faz me lembrar dela. Planejávamos visitar Paris. Quer dizer, eu
nem quero ir a Paris, mas fico só imaginando como a Katherine ia ficar empolgada no
Louvre. Nós iríamos a restaurantes finos e talvez bebêssemos vinho tinto. Chegamos até a
procurar hotéis na Internet. Poderíamos ter feito isso com o dinheiro do KranialKidz.12
— Cara, se o Kentucky faz você se lembrar de Paris, nós estamos mal mesmo.
Colin se sentou e olhou para a grama malcortada da parada de beira de estrada. E então
olhou para o trabalho habilidoso que Hassan havia realizado na mesa.
— Baguetes — Colin explicou.
— Ai, meu Deus! Dá essas chaves aqui.
Colin colocou a mão no bolso e jogou as chaves displicentemente para o outro lado da
mesa. Hassan apanhou-as enquanto se levantava e foi na direção do Rabecão de Satã. Colin
o seguiu, desanimado.
• • •
Sessenta quilômetros adiante na estrada, ainda no Kentucky, Colin havia se aconchegado
junto à janela do carona e estava começando a pegar no sono quando Hassan anunciou:
— O Maior Crucifixo de Madeira do Mundo: Próxima Saída!
— Nós não vamos parar para ver o Maior Crucifixo de Madeira do Mundo.
— Ah, se vamos — disse Hassan. — Deve ser enorme!
— Hass, por que nós pararíamos para ver o Maior Crucifixo de Madeira do Mundo?
— Essa é uma viagem de carro! É uma aventura! — Hassan bateu no volante para enfatizar
sua empolgação. — Não é como se tivéssemos um lugar para ir. Você quer mesmo morrer
sem nunca ter visto o Maior Crucifixo de Madeira do Mundo?
Colin ponderou sobre aquilo.
— Quero. Em primeiro lugar, nem eu nem você somos cristãos. Em segundo, passar o
verão inteiro correndo atrás de atrações turísticas idiotas de beira de estrada não vai ajudar
em nada. E, em terceiro, crucifixos me fazem me lembrar dela.
— Quem?
— Ela.
— Kafir, ela era ateia!
— Nem sempre — Colin disse baixinho. — Ela usava um pingente de crucifixo, há muito
tempo. Antes de a gente namorar.
Ele olhou pela janela, pinheiros passavam depressa. Sua memória imaculada invocou o
crucifixo de prata.
— Seu nível de sitzpinklerice me dá nojo — disse Hassan, mas pisou fundo no acelerador do
Rabecão e continuou em frente, passando batido pela saída.
11 Mas o fato é que se chamava fetor hepaticus mesmo: um sintoma do estágio avançado de insuficiência hepática.
Basicamente, o que acontece é que seu hálito fica com o cheiro de um cadáver em decomposição.
12 Mais sobre isso adiante, mas, basicamente: um ano antes, mais ou menos, Colin tivera acesso a uma certa quantia em
dinheiro.

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